“Ovo”, espetáculo do Cirque du Soleil dirigido por Deborah Colker, chega enfim ao Brasil, dez anos depois de sua estreia no Canadá, em 2009, depois de ser visto por 5 milhões de pessoas pelo mundo. Não se trata de uma exceção: os espetáculos da trupe costumam passar anos entre América do Norte, Ásia e Europa antes de passar pela América do Sul. A temporada brasileira começa em março de 2019, em Belo Horizonte (de 7 a 17, no Ginásio Mineirinho), e depois segue para o Rio (de 21 a 31, na Jeunesse Arena), Brasília (5 a 13 de abril, no Ginásio Nilson Nelson) e São Paulo (19 de abril a 12 de maio, no Ginásio do Ibirapuera).
Seria natural que a diretora estivesse ansiosa por saber a reação da plateia brasileira à sua criação — concebida a partir de um olhar brasileiro, não só o dela, mas também o do cenógrafo Gringo Cardia e do compositor Berna Ceppas. E ela está, mas sua ansiedade se relaciona com um público bem específico:
— Minha mãe e meus irmãos ainda não viram o espetáculo — conta. — E quero saber o que meu irmão, (o fotógrafo) Flávio Colker, acha. Ele tem um olho muito crítico.
Não que Deborah dê pouca importância para o público em geral. Pelo contrário. Ao longo das últimas décadas, em trabalhos como “Velox” e “Rota”, ela e sua companhia desenvolveram uma linguagem para se comunicar com plateias amplas, para além das fronteiras da dança. Para Deborah, “Ovo” é um espetáculo de apelo universal.
— Adoro o público, já fui inclusive atacada por isso. O próprio Cirque é muito questionado artisticamente — nota Deborah, ressaltando que a trupe nunca teve críticas tão boas em Londres quanto as de “Ovo”, que estreou na Inglaterra em janeiro. — Tenho amigos e familiares que disseram que eu estava me vendendo quando aceitei o convite pro “Ovo”. Mas sempre fui pop. Isso fica menos claro em trabalhos mais recentes, como “Cão sem plumas”, mas que num certo sentido também é pop ao misturar cinema, poesia, dança, música. Tenho um público diversificado, que no Brasil inclui enfermeiras, taxistas, seguranças. Mas é importante dizer que minha companhia é experimental. A roda, a parede (de escalada) se tornaram um sucesso, mas ninguem tinha feito, era experimental. Ninguém sabia que ia dar certo.
“Ovo” é mais um capítulo da trajetória de Deborah, combinando sucesso de público com a expansão de limites da linguagem artística. No palco, Deborah põe uma lupa sobre o mundo dos insetos — colorido e rico em formas e movimentos. Os cenários de Gringo estilizam o habitat de formigas, borboletas, cigarras, escaravelhos e outros bichos em escalas monumentais — para se ter uma ideia, a parede no fundo do palco mede 20m de largura por 9m de altura.
— Trabalhamos com a ideia de ninho. A parede é uma espécie de formigueiro gigante — conta Gringo. — Quis construir o maior cenário que já tinha feito. O conceito é de um cenário enorme que vai descascando ao longo do espetáculo até atingir sua essência. E transformamos os equipamentos circenses (como o monociclo que simula um pedaço de madeira, ou os tamboretes usados no malabarismo que foram vertidos em kiwis) .
O cenógrafo nota uma particularidade do trabalho para o Cirque du Soleil: os cenários tem que ser pensados para durar 15 anos.
— O ovo tem que ser feito de titânio e só um cara no mundo faz do jeito que tem que ser, essas coisas. Acaba ficando tudo mais caro. Ao mesmo tempo, eles têm uma coisa de trupe de circo, viajam sem parar. O cigano tá lá, mas é um cigano tecnopop. E rico.
O espetáculo começa com um ovo gigante tomando o palco e causando perplexidade nos insetos — referência clara ao monolito de 2001. A partir daí se desenrola a história do inseto estrangeiro, portador do ovo, que chega à comunidade e provoca reações variadas — em pararalelo, vive uma história de amor com a joaninha.
— É um espetáculo também sobre o que é o estrangeiro, o que é o ovo, o que é o migrante… Uma reflexão que, vemos no noticiário dos últimos anos, é cada vez mais necessária — aponta Deborah.
A ideia de trabalhar com insetos foi da diretora, respondendo ao convite de Guy Laliberté, fundador do Cirque. Ele encomendou a ela um espetáculo sobre biodiversidade.
— Perguntei se ele queria algo panfletário. Ele me respondeu que não. Só de falarmos do assunto já seria ótimo. Fui aos insetos porque era uma maneira que tinha de corresponder a cada técnica circense usando uma família de insetos: formiga, bicho-pau, grilo, pulga, cigarra — lembra a coreógrafa.
Deborah conta que o espetáculo sobre diversidade e aceitação nasceu junto com seu neto, Theo:
— O nascimento do Theo, que sofre de uma doença raríssima, é um marco em minha vida. Ele é minha maior alegria e minha missão — diz Deborah, que faz paralelos entre a trama de “Ovo” e os caminhos políticos que o mundo tem tomado. — Historicamente, sempre existiu essa rejeição ao outro. Mas agora isso vem crescendo de novo, esse nacionalismo ferrenho de Trump e Bolsonaro. Sou judia, sei o que é isso. Homossexuais, negros, essa perseguição existe há muito tempo. E isso ficou mais evidente pra mim com a chegada do Theo. Amo X-Men, a ideia de entender os mutantes, os diferentes, como seres especiais. Cada vez mais quero falar sobre isso. É o que “Ovo” faz, dentro de sua loucura circense pop.
* texto de Leonardo Lichote, O Globo